21/08/2014, 22:06 |
http://nagado.blogspot.com.br/2014/08/se...tista.html
É possível apreciar a obra de um artista mesmo quando ele demonstra posturas contrárias à nossa visão de mundo e até mesmo nossos princípios mais intocáveis?
Há cerca de um ano, um dos maiores roteiristas de quadrinhos de todos os tempos, o inglês Alan Moore, deu uma declaração polêmica onde ele disse que super-heróis são abominações, que ele os odeia. Ainda, acrescentou que acha o fim da picada um adulto ir no cinema ver Os Vingadores, um filme baseado em conceitos criados pra entreter crianças de décadas no passado. Foi duramente criticado por estar cuspindo no prato que comeu, o gênero dos super-heróis. Só pra colocar no contexto quem não conhece bem o assunto, Moore fez grandes HQs de super-heróis, como Watchmen (a suprema desconstrução do gênero), Supreme (uma ode aos conceitos do antigo Superman) e algumas das melhores HQs do Homem de Aço. Mas ele ficou ranzinza, rompeu com a DC Comics e sempre foi contra ver suas HQs vertidas para o cinema, tendo cedido os direitos da parte que lhe cabia aos seus parceiros de criação. Comprou briga, foi xingado por muita gente e, nem por isso, deixou de ser um dos maiores gênios dos quadrinhos de todos os tempos.
Alan Moore (esq.) e Frank Miller:
Gênios em atrito com fãs
Falando de HQ, outro ícone dos quadrinhos ocidentais, Frank Miller, autor de Batman - O Cavaleiro das Trevas, Demolidor, 300 e Sin City, entre outros, atraiu a ira de muitos fãs por demonstrar ideias alinhadas com os setores mais conservadores da política dos EUA. Tanto Moore quanto Miller parecem ter passado o período de maior eferverscência criativa e acabaram ganhando evidência por declarações vistas como antipáticas para muitos antigos admiradores.
Vamos agora a outro exemplo de artista longe de seu ápice de popularidade comprando briga por suas opiniões. Aqui no Brasil, o veterano roqueiro Lobão enfureceu os militantes de esquerda com declarações agressivas e bombásticas contra o PT, os Black Blocs e tudo o que se autodefine como politicamente progressista. Conseguiu, claro, atrair ódio de uma multidão atuante nas redes sociais. Lendo críticas ao velho lobo, vi que muitos o taxaram de "reaça" (uma denominação estúpida, mas vá lá) e misturavam tudo a críticas estapafúrdias à sua música. De repente, um dos melhores compositores de sua geração passou a ser taxado como medíocre e sem talento por conta de suas posições políticas radicais. Mas há casos muito piores, como o do compositor e regente japonês Koichi Sugiyama.
Álbum com a cultuada trilha
do jogo Dragon Quest.
Por trás dela, um
homem com posições
políticas muito
controversas.
Músico de carreira longeva e conselheiro da poderosa JASRAC, a associação que distribui direitos autorais musicais em seu país, Sugiyama compôs o fantástico tema de abertura da minha série favorita, O Regresso de Ultraman. Ele também trabalhou nas trilhas sonoras de Cyborg 009, Space Runaway Ideon, Gatchaman, Godzilla x Biollante e para games da série Dragon Quest. Em matéria de trilhas sonoras para games, seu nome é lendário e uma referência no gênero. Porém, lendo sobre ele, descobri que Sugiyama é um revisionista, um termo usado no Japão para aqueles que tentam negar o histórico de crimes de guerra japoneses. Isso inclui contestar relatos sobre os horrores cometidos por militares japoneses na China, no que ficou conhecido como o Massacre de Nanquim. Ele também nega o caso das mulheres de conforto da Coréia, sequestradas e forçadas a servir em bordéis do exército japonês na Segunda Guerra.
Para qualquer povo, conhecer sua História é importante. Guerras sempre afloram o que há de pior no ser humano e negar o que houve de ruim é um desserviço à paz e uma afronta à memória dos inocentes mortos. A situação é igual à de pessoas que tentam negar o Holocausto dos judeus na Segunda Guerra e dizer que jamais houve nada daquilo, que é invenção de propaganda.
Os exemplos citados, de países diferentes, têm em comum o fato de serem artistas com posicionamentos pessoais bastante criticados. Mas é preciso, sempre que possível, separar a obra da pessoa do artista. O que um indivíduo faz em sua vida pessoal não necessariamente vai interferir em sua produção criativa, mesmo que ele seja engajado em uma causa.
Nos EUA, o desenhista de quadrinhos Phil Jimenez (de Crise Infinita, Mulher Maravilha e outros trabalhos) é gay assumido e militante dos direitos dos homossexuais, mas sua arte sempre esteve a favor da qualidade, não de uma bandeira de militância. Fora das HQs, ele é ativista de suas causas, mas age com diplomacia, não querendo impor sua visão de mundo de forma panfletária. Agindo assim, consegue muito mais simpatizantes, por ser alguém inserido no mercado mainstream e sendo reconhecido primeiro por seu trabalho de grande qualidade. E quando ele fala, é com muita ponderação, facilitando a aceitação de suas mensagens. Ele está na contramão da atitude de outros que assumem posições radicais e intolerantes, consideradas agressivas por muitos e que lhes trazem críticas pessoais misturadas às de cunho profissional. É difícil separar as coisas, mas vale lembrar que posições políticas, religiosas e pessoais também podem ser analisadas sem que o caráter da pessoa seja colocado em jogo. Muito menos sua capacidade criativa ou artística.
Há limites para isso? Sem dúvida, e cada um tem os seus. Jamais conseguiria apreciar de modo isento um trabalho artístico de um serial killer, de um estuprador ou terrorista. No máximo, iria lamentar que um talento tenha sido ofuscado por impulsos sinistros. No entanto, há inúmeras outras situações que se alojam de modo mais ponderado no campo dos posicionamentos políticos e visão de mundo.
E uma visão de mundo sempre se forma por uma combinação vários fatores. Entram na equação a índole, criação, meio, intelecto, sistema de crenças e consequente percepção sobre prioridades, tudo não necessariamente nessa ordem. E quanto a isso, tentar entender e respeitar o pensamento diferente é fundamental para qualquer sociedade, ainda mais nestes tempos de redes sociais, onde as pessoas têm necessidade de esfregar sua opinião na cara dos outros sobre qualquer coisa e em qualquer ocasião. Tolerância e respeito são regras básicas para a vida em sociedade, seja ela real ou virtual.
É possível apreciar a obra de um artista mesmo quando ele demonstra posturas contrárias à nossa visão de mundo e até mesmo nossos princípios mais intocáveis?
Há cerca de um ano, um dos maiores roteiristas de quadrinhos de todos os tempos, o inglês Alan Moore, deu uma declaração polêmica onde ele disse que super-heróis são abominações, que ele os odeia. Ainda, acrescentou que acha o fim da picada um adulto ir no cinema ver Os Vingadores, um filme baseado em conceitos criados pra entreter crianças de décadas no passado. Foi duramente criticado por estar cuspindo no prato que comeu, o gênero dos super-heróis. Só pra colocar no contexto quem não conhece bem o assunto, Moore fez grandes HQs de super-heróis, como Watchmen (a suprema desconstrução do gênero), Supreme (uma ode aos conceitos do antigo Superman) e algumas das melhores HQs do Homem de Aço. Mas ele ficou ranzinza, rompeu com a DC Comics e sempre foi contra ver suas HQs vertidas para o cinema, tendo cedido os direitos da parte que lhe cabia aos seus parceiros de criação. Comprou briga, foi xingado por muita gente e, nem por isso, deixou de ser um dos maiores gênios dos quadrinhos de todos os tempos.
Alan Moore (esq.) e Frank Miller:
Gênios em atrito com fãs
Falando de HQ, outro ícone dos quadrinhos ocidentais, Frank Miller, autor de Batman - O Cavaleiro das Trevas, Demolidor, 300 e Sin City, entre outros, atraiu a ira de muitos fãs por demonstrar ideias alinhadas com os setores mais conservadores da política dos EUA. Tanto Moore quanto Miller parecem ter passado o período de maior eferverscência criativa e acabaram ganhando evidência por declarações vistas como antipáticas para muitos antigos admiradores.
Vamos agora a outro exemplo de artista longe de seu ápice de popularidade comprando briga por suas opiniões. Aqui no Brasil, o veterano roqueiro Lobão enfureceu os militantes de esquerda com declarações agressivas e bombásticas contra o PT, os Black Blocs e tudo o que se autodefine como politicamente progressista. Conseguiu, claro, atrair ódio de uma multidão atuante nas redes sociais. Lendo críticas ao velho lobo, vi que muitos o taxaram de "reaça" (uma denominação estúpida, mas vá lá) e misturavam tudo a críticas estapafúrdias à sua música. De repente, um dos melhores compositores de sua geração passou a ser taxado como medíocre e sem talento por conta de suas posições políticas radicais. Mas há casos muito piores, como o do compositor e regente japonês Koichi Sugiyama.
Álbum com a cultuada trilha
do jogo Dragon Quest.
Por trás dela, um
homem com posições
políticas muito
controversas.
Músico de carreira longeva e conselheiro da poderosa JASRAC, a associação que distribui direitos autorais musicais em seu país, Sugiyama compôs o fantástico tema de abertura da minha série favorita, O Regresso de Ultraman. Ele também trabalhou nas trilhas sonoras de Cyborg 009, Space Runaway Ideon, Gatchaman, Godzilla x Biollante e para games da série Dragon Quest. Em matéria de trilhas sonoras para games, seu nome é lendário e uma referência no gênero. Porém, lendo sobre ele, descobri que Sugiyama é um revisionista, um termo usado no Japão para aqueles que tentam negar o histórico de crimes de guerra japoneses. Isso inclui contestar relatos sobre os horrores cometidos por militares japoneses na China, no que ficou conhecido como o Massacre de Nanquim. Ele também nega o caso das mulheres de conforto da Coréia, sequestradas e forçadas a servir em bordéis do exército japonês na Segunda Guerra.
Para qualquer povo, conhecer sua História é importante. Guerras sempre afloram o que há de pior no ser humano e negar o que houve de ruim é um desserviço à paz e uma afronta à memória dos inocentes mortos. A situação é igual à de pessoas que tentam negar o Holocausto dos judeus na Segunda Guerra e dizer que jamais houve nada daquilo, que é invenção de propaganda.
Os exemplos citados, de países diferentes, têm em comum o fato de serem artistas com posicionamentos pessoais bastante criticados. Mas é preciso, sempre que possível, separar a obra da pessoa do artista. O que um indivíduo faz em sua vida pessoal não necessariamente vai interferir em sua produção criativa, mesmo que ele seja engajado em uma causa.
Nos EUA, o desenhista de quadrinhos Phil Jimenez (de Crise Infinita, Mulher Maravilha e outros trabalhos) é gay assumido e militante dos direitos dos homossexuais, mas sua arte sempre esteve a favor da qualidade, não de uma bandeira de militância. Fora das HQs, ele é ativista de suas causas, mas age com diplomacia, não querendo impor sua visão de mundo de forma panfletária. Agindo assim, consegue muito mais simpatizantes, por ser alguém inserido no mercado mainstream e sendo reconhecido primeiro por seu trabalho de grande qualidade. E quando ele fala, é com muita ponderação, facilitando a aceitação de suas mensagens. Ele está na contramão da atitude de outros que assumem posições radicais e intolerantes, consideradas agressivas por muitos e que lhes trazem críticas pessoais misturadas às de cunho profissional. É difícil separar as coisas, mas vale lembrar que posições políticas, religiosas e pessoais também podem ser analisadas sem que o caráter da pessoa seja colocado em jogo. Muito menos sua capacidade criativa ou artística.
Há limites para isso? Sem dúvida, e cada um tem os seus. Jamais conseguiria apreciar de modo isento um trabalho artístico de um serial killer, de um estuprador ou terrorista. No máximo, iria lamentar que um talento tenha sido ofuscado por impulsos sinistros. No entanto, há inúmeras outras situações que se alojam de modo mais ponderado no campo dos posicionamentos políticos e visão de mundo.
E uma visão de mundo sempre se forma por uma combinação vários fatores. Entram na equação a índole, criação, meio, intelecto, sistema de crenças e consequente percepção sobre prioridades, tudo não necessariamente nessa ordem. E quanto a isso, tentar entender e respeitar o pensamento diferente é fundamental para qualquer sociedade, ainda mais nestes tempos de redes sociais, onde as pessoas têm necessidade de esfregar sua opinião na cara dos outros sobre qualquer coisa e em qualquer ocasião. Tolerância e respeito são regras básicas para a vida em sociedade, seja ela real ou virtual.