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Entrevista com Stanley Kubrick


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Michel Ciment: Uma vez que tantas interpretações diferentes têm sido oferecidas sobre Laranja Mecânica, como você vê seu próprio filme?

Stanley Kubrick: A idéia central do filme tem a ver com a questão de livre-arbítrio. Nós perdemos nossa humanidade se somos privados da escolha entre bem e mal? Nós nos tornamos, como o título sugere, uma Laranja Mecânica? Recentes experiências em condicionamento e controle da mente em prisioneiros voluntários na América têm levado essa questão além da esfera da ficção científica. Ao mesmo tempo, eu penso que o impacto dramático do filme tem a ver principalmente com o extraordinário personagem Alex, concebido por Anthony Burgess no seu brilhante e original romance. Aaron Stern, o antigo chefe do conselho de classificação da MPAA na América, que é também um psiquiatra praticante, sugeriu que Alex representa o inconsciente: o homem no seu estado natural. Após lhe é dada a ‘cura’ Ludovico, ele foi ‘civilizado’, e a doença que se segue pode ser vista como a neurose imposta pela sociedade.

O chapelão é um personagem central no filme?

Apesar de ele ser parcialmente concebido por trás de um disfarce satírico, o chapelão da prisão, interpretado por Godfrey Quigley, é a voz moral do filme. Ele desafia o implacável oportunismo do Estado em prosseguir com seu programa de reforma de criminosos através do condicionamento psíquico. Um balanço muito delicado tinha que ser alcançado na performance de Godfrey entre sua imagem um tanto cômica e a respeito das relevantes idéias que ele é convocado para expressar.

Em uma camada política, o final do filme mostra uma aliança entre o marginal e as autoridades.

O governo eventualmente recorre ao trabalho dos mais cruéis e violentos membros da sociedade para controlar todas as outras pessoas – não é uma idéia completamente nova ou não ensaiada. Nesse sentido, a última frase de Alex, ‘Eu fui realmente curado’, pode ser vista pela mesma luz da linha de saída do Dr. Strangelove, ‘Mein Fuehrer, eu posso andar!’ As imagens finais de Alex como uma criança mimada da corrupta, totalitária sociedade, e o renascimento de Strangelove após a milagrosa recuperação de uma doença incapacitante, parece trabalhar bem dramaticamente como expressões de uma mesma idéia.

O que me diverte é que muitos críticos se referem a essa sociedade como comunista, ao passo que não há razão para pensar assim.

O ministro, interpretado por Anthony Sharp, é claramente uma figura da Direita. O escritor, Patrick Magee, é um lunático da Esquerda. ‘As pessoas comuns devem ser levadas, dirigidas, empurradas!’, ele arqueja no telefone. ‘Eles irão vender suas liberdades por uma vida mais fácil!’

Mas elas poderiam ser muitas das palavras de uma fascista.

Sim, claro. Elas diferem apenas nos seus dogmas. Os meios e fins delas são dificilmente indistinguíveis.

Você lida com a violência em um modo que parece que a distancia.

Se isso ocorre deve ser porque a história no romance e no filme é contada por Alex, e tudo que acontece é visto pelos olhos dele. Como ele tem seu modo bastante especial de ver o que faz, isso pode ter algum efeito em distanciar a violência. Algumas pessoas têm afirmado que isso fez a violência atraente. Penso que essa visão é totalmente equivocada.

A dama dos gatos era muito mais velha no livro. Por que você modificou sua idade?

Ela preenche o mesmo propósito do romance, mas eu penso que ela deve ser um pouco mais interessante no filme. Ela é mais jovem, é verdade, mas é tão antipática e imprudentemente agressiva quanto no livro.

Você também eliminou o assassinato que Alex cometeu na prisão.

Isso tinha a ver inteiramente com o problema da duração. O filme tem, de qualquer modo, cerca de duas horas e dezessete minutos, e essa não parecia ser uma cena necessária.

Alex não é mais um adolescente no filme.

A idade de Malcolm McDowell não é fácil de se julgar no filme, e ele era, sem a menor sombra de dúvidas, o melhor ator para o papel. Poderia ter sido mais divertido se Malcolm tivesse dezessete anos, mas outro ator de dezessete anos sem o talento extraordinário de Malcolm não teria se saído melhor.

De algum modo a prisão é o lugar mais moderado em todo o filme. E o carcereiro, que é uma figura tipicamente britânica, é mais simpático do que muitos outros personagens.

O carcereiro da prisão, interpretado pelo falecido Michael Bates, é um obsoleto funcionário da nova ordem. Ele lida muito pobremente com os problemas ao seu redor, sem entender tanto os criminosos quanto as reformas. Apesar de todos os seus berros e intimidações, ele é menos uma espécie de vilão do que seus bem vestidos e mais sofisticados senhores.

Em seus filmes, o Estado é pior que muitos criminosos, mas os cientistas são ainda piores que o Estado.

Não colocaria dessa forma. A ciência moderna parece ser muito perigosa porque ela tem dado o poder de nos destruirmos antes que saibamos como lidar exatamente com ela. Por outro lado, é bobagem culpar cientistas por suas descobertas, e em qualquer caso, não podemos controlar a ciência. Quem faria isso, de qualquer modo? Políticos são certamente desqualificados para fazer as necessárias decisões técnicas. Antes dos primeiros testes com bomba atômica em Los Alamos, um pequeno grupo de físicos trabalhando no projeto argumentou contra o teste porque pensava que existia a possibilidade de a detonação da bomba causar uma reação em cadeia, que poderia destruir o planeta inteiro. Mas a maioria dos físicos discordou e recomendou que o teste fosse levado adiante. A decisão de ignorar esse terrível alerta e proceder com o teste foi tomada por mentes políticas e militares que certamente não poderiam entender a física envolvida em ambos os lados de argumentação. Alguém poderia pensar que, mesmo que apenas a minoria dos físicos acreditasse que o teste poderia destruir a Terra, nenhum homem em sanidade decidiria em levar isso adiante. O fato de a Terra continuar aqui não altera a incompreensível decisão que foi feito naquela altura.

A idéia do Milk Bar foi sua?

Parte dela foi. Eu tinha visto uma exibição de esculturas que mostravam figuras femininas como mobília. Disso me veio a idéia para as figuras femininas de acrílico que foram usadas como mesas no Milk Bar. O falecido John Barry, que era o designer de produção do filme, desenhou o set. Para obter as poses corretas para a escultora que modelou as figuras, John fotografou uma modelo nua em tantas posições quanto você poderia imaginar que pudessem criar uma mesa. Há menos posições do que pode passar pela sua cabeça.

Foi com Dr. Fantástico que você realmente começou a utilizar músicas como uma referência cultural. Qual a sua atitude em relação a música no cinema em geral?

Ao menos que você queira uma pontuação pop, eu não vejo nenhum motivo para não se aproveitar da maravilhosa música orquestral do passado e presente. Essa música pode ser usada na sua forma original ou sintetizada, como foi feito com Beethoven para algumas cenas em Laranja Mecânica. Mas não parece fazer muito sentido contratar um compositor. Tão bom quanto ele possa ser, não é um Mozart ou Beethoven – quando se tem uma escolha tão vasta na música orquestral, que inclui trabalhos contemporâneos e vanguardistas. Fazer isso nesse modo te dá a oportunidade de experimentar com a música na fase de edição, e em algumas instâncias cortar a cena para a música. Não é algo que você possa facilmente fazer na seqüência normal de eventos.

A música foi escolhida após o filme estar completado? E com quais bases?

A maior parte sim, mas eu tinha coisa ou outra em minha cabeça desde o início. É um pouco difícil dizer por que escolher determinado pedaço de música. Idéias chegam a você, você as experimenta, e em determinado ponto você decide que está fazendo a coisa certa. É uma questão de gosto, sorte e imaginação, da forma como todo o resto está virtualmente conectado com a produção de um filme.

Seu gosto musical está ligado às origens vienenses de seu pai?

Meu pai nasceu na América, e é um doutor residente na Califórnia. A mãe dele era romena, e o pai dele veio de um local que hoje está situado na Polônia. Então eu creio que minhas aptidões musicais foram provavelmente adquiridas, não herdadas.

Pode parecer que você intencionou criar uma trilogia sobre o futuro nos seus últimos três filmes. Já pensou sobre isso?

Não há um padrão deliberado para as histórias que escolhi para transformar em filmes. Sobre o único fator de cada trabalho é que procuro não me repetir. Desde que você não seja sistemático em encontrar histórias para filmes, eu leio qualquer coisa. Além dos livros que soam interessantes, eu aposto na sorte e nos acidentes para eventualmente me levarem próximo ao livro. Eu leio tão inconscientemente quanto evito interferir com o impacto emocional da história. Se o livro prova ser excitante e sugere a si mesmo como uma possível escolha, subseqüentes leituras são feitas muito mais cuidadosamente, geralmente com notas sendo tomadas ao mesmo tempo. Caso o livro seja finalmente o que eu quero, é muito importante para mim em reter, durante as subseqüentes fases do processo de filmagem, minhas impressões da primeira leitura. Após você ter trabalhado em um filme, talvez por mais de um ano, tudo sobre ele acaba se tornando tão familiar que você fica em perigo de não ver a floresta pelas árvores. Por isso é tão importante que você seja capaz de expressar sua primeira impressão como critério para se tomar decisões sobre a história tempos mais tarde. Quem quer que seja o diretor, e quão perceptível ele tenha filmado e editado o filme, ele nunca pode ter a mesma experiência do público ao ver o produto pela primeira vez. A primeira vez do diretor é a primeira leitura da história, e as impressões e emoções desse evento devem durar até o trabalho final da película. Felizmente eu nunca escolhi uma história onde a emoção não foi à distância. Seria algo terrível se fosse diferente.

Dessa vez você escreveu seu roteiro sozinho. Como você compara os problemas entre escrever um roteiro e um romance?

Escrever um roteiro é bastante diferente de escrever um romance ou uma história original. Uma boa história é uma espécie de milagre, e creio que é dessa forma que posso descrever o alcance de Burgess com o livro. Laranja Mecânica tem um enredo maravilhoso, personagens fortes e filosofia clara. Quando você pode escrever um livro como esse, você realmente criou algo. Por outro lado, adaptar um roteiro de um livro é muito mais um processo lógico – algo entre escrever e quebrar um código. Não requere a inspiração ou a invenção de um novelista. Não estou dizendo que é fácil escrever um bom roteiro, certamente não é – e muitos bons romances foram arruinados no processo.

Apesar das mais sérias de suas intenções e de quão importantes sejam as idéias da história para você, o enorme custo de um filme torna necessário alcançar a maior audiência em potencial para aquela história, da maneira que dê aos seus financiadores a melhor chance de reaverem seu investimento e, com esperanças, proporcionar lucros. Ninguém irá discordar que uma boa história é um começo essencial para alcançar esse objetivo. Mas outro aspecto, também: quanto mais forte é a história, maiores as chances que você tem com todo o resto.

Creio que Dr. Fantástico seja um bom exemplo disso. Ele foi baseado em um suspense muito bom, Red Alert, escrito por Peter George, um navegador veterano da RAF. As idéias da história e todo o seu suspense continuaram lá mesmo quando tudo foi completamente desviado em humor negro.

O final do filme é diferente do desfecho do livro.

Há duas versões diferentes do livro. Uma tem um capítulo extra. Eu não havia lido essa versão até ter virtualmente concluído o roteiro. Este capítulo extra retrata a reabilitação de Alex. Mas isso é, tão longe quanto tenho conhecimento, pouco convincente e inconsistente com o estilo e intenção do livro. Não ficaria surpreso em saber que a editora tenha de alguma forma prevalecido diante da insistência de Burgess em aderir um capítulo extra no qual o livro teria terminado com uma nota mais positiva. Eu nunca considerei seriamente em usar isso.

Em Laranja Mecânica, Alex é um personagem do mal, assim como Strangelove, mas Alex de alguma forma parece ser menos repulsivo.

Alex tem vitalidade, coragem e inteligência, mas você não pode falhar em ver que ele é essencialmente mal. Ao mesmo tempo, há um estranho tipo de identificação psicológica com ele que ocorre gradualmente, apesar de você ser bastante repelido pelo seu comportamento. Eu creio que isso ocorre por duas razões. A primeira: Alex é sempre completamente honesto na sua narrativa em primeira pessoa, talvez até mesmo de forma bastante dolorosa. Segundo porque, em uma camada inconsciente, eu suspeito que todos nós dividimos certos aspectos da personalidade de Alex.

Alex ama estupros e Beethoven: o que você acha que isso implica?

Eu acho que isso sugere a insuficiência da cultura como tradução de algum refinamento moral na sociedade. Hitler amava boa música e muitos nazistas importantes eram homens bastante sofisticados e culturalmente ricos, mas isso não os tornou – eles e quem quer que seja – moralmente um pouco melhores.

Ao contrário de Rousseau, você acredita que o homem nasce mau e a sociedade o torna ainda pior?

Não colocaria dessa forma. Eu acho que, quando Rousseau transferiu o conceito do pecado original do homem para a sociedade, ele foi responsável por um monte de pensamentos sociais equivocados. Não acredito que o homem é o que é por causa da imperfeita estrutura social, mas, sim, que a sociedade está imperfeitamente estruturada, mais ainda, por causa da natureza do homem. Nenhuma filosofia baseada em uma visão incorreta da natureza humana é susceptível de produzir o bem social.

Seu filme lida com os limites do poder e da liberdade.

O filme explora as dificuldades em reconciliar o conflito entre a liberdade individual e a ordem social. Alex exercita sua liberdade para ser um criminoso viciado até que o Estado o transforma em um zumbi inofensivo não mais consciente em escolher entre o bem e o mal. Uma das conclusões do filme é, evidentemente, que há limites aos quais a sociedade pode ir mantendo a lei e ordem. A sociedade não deve fazer a coisa errada pela razão correta, embora mesmo ela frequentemente faça a coisa certa pela razão errada.

O que te atraiu ao romance de Burgess?

Tudo. O enredo, os personagens, as idéias. Eu estava também interessado em como a história se aproximava dos contos de fadas e mitos, particularmente no seu uso deliberadamente pesado de coincidências e simetria na narrativa.

Nos seus filmes, você parece ser um crítico de todas as facções políticas. Você se definiria como um pessimista ou anarquista?

Certamente não sou um anarquista, e não me vejo também como um pessimista. Eu acredito muito fortemente na democracia parlamentar, e faço parte da convicção de que poder e autoridade do Estado devem ser refinados e exercitados apenas na extensão que é requerida para manter as coisas civilizadas. A História tem nos mostrado o que acontece quando tenta-se tornar a sociedade excessivamente organizada, ou quando intenciona-se realizar um bom trabalho ao eliminar elementos indesejáveis. Isso também mostra a trágica falácia na crença de que a destruição das instituições democráticas irá provocar o surgimento de algo melhor no lugar.

Certamente um dos mais desafiadores e complicados problemas sociais que enfrentamos hoje é: pode o Estado manter o necessário grau de controle da sociedade sem se tornar repressivo, ou como ele pode alcançar isso em face da crescente impaciência do eleitorado, que está começando a considerar as soluções políticas e legais como bastante lentas? O Estado vê o espectro crescendo acima do terrorismo e anarquia, e isso aumenta o risco de uma reação exagerada e de uma redução de nossa liberdade. Assim como tudo na vida, é uma questão de procura pelo equilíbrio apropriado, e um certo quesito de sorte.

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